segunda-feira, 28 de setembro de 2009

REEXAME NECESSÁRIO : Não aplicabilidade do princípio non reformatio in pejus

REEXAME NECESSÁRIO : Não aplicabilidade do princípio non reformatio in pejus

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 13-05-2005

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REEXAME NECESSÁRIO : Não aplicabilidade do princípio non reformatio in pejus.

INTRODUÇÃO Não obstante as constantes reformas que vem sofrendo o Código de Processo Civil - Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – ao longo de sua existência, percebe-se que ainda persistem algumas reminiscências de caráter inquisitório em nossa legislação processual, fruto do pensamento do legislador de antanho, que na verdade constituem verdadeiros óbices à efetividade do processo e instrumentos de violação de princípios constitucionais assegurados no Estado democrático de Direito. O conhecido Recurso de Ofício ou numa linguagem mais apurada tecnicamente “Reexame Necessário “ é um desses legados . É de se notar que predomina na doutrina o entendimento de que o reexame necessário não tem a natureza jurídica de recurso em face dos princípios que o informam, tanto que foi inserido no atual Código de Processo Civil no Título VIII, do Livro I, Capítulo VIII, que trata da sentença e da coisa julgada, ao contrário do Código de Processo Civil de 1939 que o disciplinava no Livro VII, que tratava dos recursos, todavia, parte da doutrina e decisões emanadas de nossos Tribunais insistem em tratar o “o reexame necessário” como se fosse um recurso, ao aplicar o princípio “non reformatio in pejus” inerente aos recursos geral.

Assim sendo, é objetivo deste estudo analisar genericamente a natureza e os princípios que informam os recursos em geral e demonstrar a incompatibilidade da aplicação do princípio “non reformatio in pejus” no reexame necessário analisado pelo segundo grau de jurisdição, revelando a posição da doutrina e da jurisprudência sobre o tema em questão.

CAPÍTULO I . Recurso em Geral – generalidades.

1) Conceito e fundamentos.

Costuma-se justificar a necessidade do recurso à falibilidade humana, a irresignação do ser humano a um julgamento único, bem como a segurança e justiça das decisões, sob o argumento de que julgamentos sucessivos realizados por diferentes órgãos jurisdicionais assegurariam a justiça das decisões. O eminente processualista Barbosa Moreira (...) ao comentar genericamente sobre o conceito de recurso preleciona:

“ Geralmente, porém, cinge-se o ordenamento a permitir que se provoque o reexame, dentro de determinados limites e mediante o atendimento de certas exigências. Abre-se às partes – e, por vezes, a outras pessoas – o ensejo de impugnar a decisão proferida, pleiteando a emissão de outra, emanada em regra de órgão diverso e, por exceção, do mesmo órgão que proferiu a anterior; ou ainda, em hipóteses menos frequente, solicitando pura e simplesmente a eliminação do pronunciamento impugnado....o exercício do direito de impugnação pode atuar de dois modos diferentes. No comum dos caso , ele tem como conseqüência fazer prosseguir o processo que até então vinha correndo, em geral com deslocamento da competência: do órgão que proferiu a decisão (órgão a quo) passa o feito àquele a que incumbe o reexame ( órgãos ad quem). Chamam-se recursos os meios de impugnação que assim atuam...”

É de se notar a dificuldade de se definir ou conceituar algo, mormente quando se arrisca a não abarcar o essencial ou a completude daquilo que se quer definir ou descrever. Conceito, segundo o dicionarista Nicola Abbagano (pg.164.) é “ todo processo que torne possível a descrição, classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis”. O professor da UESC Paulo Bezerra(1) , com bastante sutileza, explicita:

“Ao observar um objeto, concreto ou abstrato, próximo ou distante, universal ou individual, o sujeito interioriza as manifestações do objeto, para depois, conferindo-lhe qualidade, adjetiva-lo, portanto, exerce atividade ou valorativa, ou simplesmente descritiva.

Ora, ao proceder a essa introspecção, introjetando as diversas formas pelas quais o objeto se lhe dá, o sujeito expõe, descreve, classifica ou prevê o objeto de duas maneiras: ou permite que sua conceituação do objeto se deixe matizar pelas suas próprias idiossincrasias, ou afasta de si o objeto, analisando-o de modo descompromissado...O perigo das impurezas dos conceitoso está sempre presente..por isso as depurações são necessárias. Daí a aplicação , já mencionada, da “navalha de occam”.. Deve-se, pois, postando-se em “posição adequada” , ter uma atitude depurativa, sem cair em reducionismo prejudiciais...”.

Desta forma, para não cair nas descrições doutrinárias desnecessárias ou desinfluentes para aquilo que se quer descrever, classificar, enfim , conceituar, ou mesmo para não incidir no “reducionismo prejudicial” ao entendimento daquilo que é essencial, o ponderável é que se tome de empréstimo os conceitos e definições dos mestres na área processual civil e proceder as devidas correlações entre seus conceitos para extrair aquilo que é essencial.

O renomado Humberto Theodoro Junior, numa acepção técnico-jurídica e valendo-se das palavras de Moacir Amaral Santos , define o recurso como “ o meio ou o poder de provocar o reexame de uma decisão, pela mesma autoridade judiciária, ou por outra hierarquicamente superior, visando a obter a sua reforma ou modificação, ou apenas a sua invalidação”.

Como se infere, o recurso é um meio de impugnar uma decisão judicial dentro de um mesmo processo, assegurando-se ao litigante que sofreu um gravame ou prejuízo o direito de ver reapreciada a matéria pelo mesmo órgão ou outro hierarquicamente superior , objetivando à sua reforma ou modificação ou a anulação do “decisum”. É de se destacar que o “ recurso” exterioriza o inconformismo da parte afetada pela decisão hostilizada e que por conta disso e de forma voluntária deseja a reforma da decisão ou sua anulação. Evidentemente, que o Recurso para ser admitido exige a concorrência de alguns princípios que lhe são inerentes, como preleciona Nelson Nery Junior (....) ao argumentar que “ Todo e qualquer recurso interposto com base no CPC deve obedecer aos princípios fundamentais que informam a teoria geral dos recursos: do duplo grau de jurisdição, da taxatividade, da singularidade, da fungibilidade da proibição da reformatio in pejus..”, o que acrescentaríamos o caráter voluntário inerente a todo o recurso, pelo qual o vencido na relação processual livremente manifesta o seu inconformismo recorrendo-se da decisão e objetivando o reexame da matéria impugnada. O princípio do duplo grau de jurisdição é bastante antigo e já era encontrado no direito hebraico, egípcio, islâmico, greco-romano, dentre outras civilizações antigas e tem como fundamento básico o inconformismo natural do ser humano contra o julgamento único, como forma de evitar os erros inerentes aos julgamentos humanos. Não obstante a Constituição de 05.10.1988 não tenha previsto expressamente o “o duplo grau de jruisdição” como princípio constitucional, Nelson Néri Junior divergindo da posição assumida por José Frederico Marques – para quem o duplo grau de jurisdição não está consagrado constitucionalmente, podendo o legislador ordinário derroga-lo em hipóteses especiais - sustenta que o principio do duplo grau de jurisdição está previsto na Constituição Federal, porém de forma relativa, como ocorre com o art. 34 da Lei de Execução Fiscal e da lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais , que não estabelece o recurso para o segundo grau de jurisdição, reconhecendo à sua preservação em nosso ordenamento jurídico como exigência do devido processo legal. A Taxatividade , segundo Nelson Nery significa “que os recursos são enumerados pelo CPC e outras leis processuais em numerus clausus, vale dizer em rol taxativo”, de sorte que somente os meios de impugnação previstos no CPC ou leis extravagantes são tipicamente recursos. Segundo o mesmo autor já citado acima, a singularidade reside no princípio de que para “cada decisão recorrível, é cabível um recurso, vedado à parte ou interessado interpor mais de um tipo de recurso contra a mesma decisão”, muito embora admita exceções, quando por exemplo quando o acórdão contiver parte unânime e não unânime, oportunidade em que se admite, em tese, a interposição simultânea de Embargos infringentes, recurso especial e/ou extraordinário. A fungibilidade é o princípio pelo qual se admite o conhecimento de um recurso por outro, desde que atenda aos requisitos do recurso efetivamente interposto e que seja também tempestivo. Outros autores ainda acrescentariam como caracteristicas intrínsecas dos recursos em sua generalidade, a dialeticidade, o interesse em recorrer, a legitimidade,tempestividade, preparo e o princípio “non reformatio in pejus”,este também admitido pelo autor já citado e pelo qual o Tribunal superior não poderá agravar a situação da parte que recorreu exclusivamente, ressalvando-se quando houver questão de ordem pública, nos termos permitidos pelo art. 267, § 3º, 301,§ 4º do CPC, aduzindo Nelson Nery (.._) que “ o sistema recursal do processo civil brasileiro não admite a reformatio in pejus quando a questão depender de alegação da parte para poder ser apreciada”.

Vê-se, pois, que esses são os princípios em que se apóiam os recursos na sistemática processual brasileira, enfatizando suas principais características genéricas. Tecidas essas considerações, impõe-se analisar o disciplinamento do reexame necessário em nosso ordenamento jurídico, sua natureza jurídica e a aplicação do princípio “non reformatio in pejus”, inclusive a posição da doutrina e da jurisprudência sobre o tema.

2) REEXAME NECESSÁRIO – Natureza jurídica e o princípio non reformatio in pejus .

De logo há de se indagar: o Reexame necessário em face dos princípios informativos inerentes aos recursos em geral pode ser considerado um recurso? A resposta negativa se impõe, pois lhe falta a voluntariedade, a taxatividade, o interesse em recorrer configurado pela sucumbência, tempestividade, legitimidade – já que juiz não é parte e não tem qualquer interesse em recorrer para obter a reforma de sua própria sentença -, tendo apenas em comum a reapreciação da matéria por órgão hierarquicamente superior e a existência dos efeitos suspensivo e devolutivo sempre presentes no reexame necessário, o que os recursos voluntários em regra são recebidos apenas no efeito devolutivo.

Muito embora já fosse prevista nas ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, segundo Nelson Nery Junior “ no direito brasileiro, a primeira noticia que se tem da apelação ex officio parece ter surgido com a lei de 04.10.1831, art. 90, que determinava ao juiz a remessa necessária ao tribunal superior de sua sentença proferida contra a Fazenda Nacional”. O Código de Processo Civil de 1939 disciplinava a apelação ex officio ou necessária no livro VII relativo aos Recursos, cujo art. 822 estabelecia o seguinte, “in verbis”:

Art. 822 – A apelação necessária ou ex officio será interposta pelo juiz mediante simples declaração na própria sentença.

Parágrafo ùnico . Haverá apelação necessária:

I – Das sentenças que declararam a nulidade de casamento.

II – Das que homologam o desquite amigável.

III – Das proferidas contra a União, O Estado ou o Município.

É de ser ver que as normas transcritas revelavam historicamente a realidade social, na qual preponderava o princípio inquisitório com a supremacia do poder religioso confundido com o próprio poder estatal,nitidamente autoritário, que se colocava numa posição infinitamente superior aos cidadãos comuns, ignorando-se a existência do princípio do contraditório, isonômico e do devido processo legal. Acompanhando a própria evolução social, o atual Código de Processo Civil, utilizando-se de uma linguagem tecnicamente mais aceitável e em consonância com os princípios processuais, retirou o reexame necessário do capítulo atinente aos Recursos em Geral e o disciplinou no art. 475, inserindo-o no capítulo VIII, que trata da sentença e da Coisa julgada. Reza o citado dispositivo legal o seguinte:

Art. 475 . Está sujeito ao duplo grau de jurisdição , não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo Tribunal, a sentença:

I – que anular o casamento;

II – proferida contra a União, O Estado e o Município;

III – que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública ( art. 585, nº VI).

Parágrafo único – Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao Tribunal , haja ou não apelação voluntária da parte vencida; não o fazendo, poderá o Presidente do Tribunal avocá-los.

Posteriormente foi editada a Lei nº 9.469, de 10.07.1997 que estendeu o reexame necessário nas sentenças proferidas também contra os interesses das autarquias e fundações. Finalmente, a Lei nº 10.352, de 26.12.2001, afinando-se com a tendência da moderna ciência processual, flexionou o reexame necessário, passando o art. 475 a ter a seguinte redação:

Art. 475 . Está sujeito ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo Tribunal , a sentença:

I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública( art. 585, VI);

§ 1º - Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avoca-los.

§ 2º - Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta ) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.

§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em Súmula deste Tribunal ou do Tribunal superior competente.

Como se depreende, o legislador do Código de Processo Civil de 1973 ao perceber que tecnicamente o instituto do reexame necessário não tinha a natureza jurídica de recurso, modificou a terminologia não mais o denominando de “apelação Ex officio” ou “apelação necessária” e espancando qualquer dúvida tratou de removê-lo do Livro do CPC de 1939 que tratava de Recurso, para inserí-lo no Código de Processo Civil de 1973 no capítulo destinado à Sentença e a Coisa Julgada, ratificando sua natureza jurídica de condição de eficácia da sentença. O processualista Nelson Nery Junior (..) discorrendo sobre o tema assim se manifestou: “ Não tem, pois, a remessa obrigatória natureza jurídica de recurso, mas trata-se de uma condição de eficácia da sentença, tendo em vista que a sentença, embora válida, só produzirá efeitos depois de confirmada pelo Tribunal”. Se assim o é, ou seja, se o reexame necessário não se trata de recurso, não se entende porque parte da doutrina e jurisprudência pátria insistem em tratá-lo como tal, aplicando-se-lhe princípios inerentes aos recursos. O mestre Frederico Marques na obra já citada o define como “Quase- Recurso” e admite a aplicação ao asseverar que “esse quase-recurso tem efeito devolutivo e efeito suspensivo. Em relação ao julgamento nele proferido, aplicam-se as regras concernentes à apelação, pois se trata de remédio destinado a rever sentenças de primeira instância. Nesse sentido, Humberto Theodoro Junior (..) admite a aplicação do princípio “non reformatio in pejus” – inerentes ao recursos em geral – no reexame necessário ao prelecionar o seguinte:

“Quanto ao conteúdo do julgamento que o Tribunal deve pronunciar, por força do reexame ex officio, há de lembrar-se que quando o duplo grau de jurisdição opera como um remédio processual de tutela dos interesses de uma das partes, como é o caso da Fazenda Pública, não pode a reapreciação da instãncia superior conduzir a uma agravamento da situação do Poder Público, sob pena de cometer-se uma intolerável reformatio in pejus”

Esse posicionamento vinha sendo adotado pelo STJ, conforme se pode observar pelos seguintes arestos e a Súmula 45, “in verbis”:

“ Reexame necessário e reformatio in pejus . O instituto da remessa ex officio consulta precipuamente o interesse do Estado ou da pessoa jurídica de direito público interno, quando sucumbente, para que a lide seja reavaliada por um colegiado e expurgada imprecisões ou excessos danosos ao interesse público.Fere a proibição da reformatio in pejus a decisão que, na remessa de ofício, agrava a condenação impingida à Fazenda Pública, sabendo-se que o duplo grau de jurisdição só a ela aproveita. Se a parte vencedora no primeiro grau de jurisdição deixou de recorrer, conclui-se que se conformou, in totum, com o julgamento não se lhe podendo beneficiar mediante um recurso cujo interesse a tutelar não é seu”( STJ, Resp 17023, rel. Min. Demócrito Reinaldo, J. 25.3.1992, DJU 1.6.1992, p. 8026)

Reformatio in pejus . O reexame necessario do CPC 475 não pode ser feito em prejuízo da entidade de direito público dele beneficiária do reexame necessário, implica ofensa ao princípio que veda a reformatio in pejus. Caracterizado, no caso, violação dos CPC 475 II e 512”( STJ 2ª T., Resp 20810-9-SP, Rel. Pádua Ribeiro. J. 13.5.1992 DJU 8.6.1992, p. 8611).

Súmula 45 – “ No reexame necessário é defeso ao Tribunal agravar a condenação imposta à Fazenda Pública”.

Como se observa, o grande equívoco perpetrado por parte da doutrina e de nossos tribunais pátrio consiste em precisamente lançar o olhar sobre o instituto do reexame necessário como recurso, aplicando-lhe indevidamente seus princípios e efeitos. O princípio “non reformatio in pejus” está vinculado intrinsicamente ao efeito devolutivo – tantum devolutum quantum appelatum – e ao princípio da demanda ou dispositivo, pelo qual o recurso devolve, ou melhor , transfere ao órgão ad quem somente a matéria impugnada, não podendo conhecer de questão que não foi alegada pela parte recorrente e que seja capaz de agravar a sua situação, ressalvando-se quando ocorrer questão de ordem pública, oportunidade em que estará autorizado em decidir contrariamente aos interesses da entidade pública. Ora essa assertiva não têm consistência jurídica porquanto o reexame, como já se viu exaustivamente, não se trata de recurso e por conseguinte não possui o efeito devolutivo, mas o translativo, pelo qual e pelo princípio do acesso aos jurisdicionados em geral a uma ordem jurídica justa é conferido ao órgãos ad quem o poder de reapreciar integralmente a sentença, objeto do reexame necessário, inclusive podendo agravar a situação da Fazenda Pública. Reconhece-se que existe um interesse público maior em assegurar às partes uma decisão justa. Não se admite que em nome da ganância exacerbada do Estado em sempre arrecadar cada vez mais possa se cometer injustiças gritantes contra o cidadão comum, já tão inferiorizado em relação ao Estado todo poderoso e autoritário. Nelson Nery Junior (..) de forma magnífica mais uma vez assim se pronuncia:

“ Não há falar-se em reformatio in pejus no reexame obrigatório. A proibição da reforma para pior é conseqüência direta do princípio dispositivo, aplicável aos recursos: se o recorrido dispôs de seu direito de impugnar a sentença, não pode receber benefício do Tribunal em detrimento do recorrente. Isto não acontece na remessa necessária, que não é recurso nem é informada pelo princípio dispositivo, mas pelo princípio inquisitivo, onde ressalta a incidência do interesse público do reexame integral da sentença. É o que se denomina de efeito translativo, a que se sujeitam as questões de ordem pública( Nery, Recursos, 408 ss). O agravamento da situação da Fazenda Pública pelo Tribunal não é reforma para pior, mas conseqüência natural do reexame integral da sentença, sendo, portanto, possível “(Nery, Recursos 413 e TRF-3ª , JSTJ 35/468).

O não menos festejado jurista Cândido Rangel Dinamarco (..) mostrando toda à sua irresignação à permanência do reexame necessário em nosso ordenamento jurídico e aplicação do princípio no reformatio inpejus por nossos tribunais, inclusive, pela Súmula 45 do STF, explicita:

“ O vigente Código de Processo Civil herdou do estatuto precedente certos marcos autoritários da ditadura getuliana, de visíveis moldes fascistas porque obsessivamente voltados à tutela do Estado, entre os quais a imposição do duplo grau obrigatório em relação às sentenças desfavoráveis à Fazenda Pública( o mal denominado recurso oficial). O mais desolador é que a doutrina pouco se interessa pelo tema, sendo poucos os que se manifestaram de modo crítico contra essa estranhíssima peculiaridade do direito processual civil brasileiro, desconhecido em ordenamentos europeus de primeira linha. Os tribunais concorrem para a exacerbação dessa postura politicamente ilegítima, ao estabelecer teses como a da impossibilidade da reformatio in pejus a danos dos entes estatais( Súmula 45 STJ) – vedando portanto uma decisão mais desfavorável à Fazenda Pública em segundo grau do que em primeiro, mediante aplicação à remessa oficial de um princípio inerente aos recursos (quando tal remessa recruso não é ) “.

Suponhamos o seguinte caso concreto: uma determinada empresa vencedora de uma concorrência pública para construção de uma obra de canalização de esgotos é de repente surpreendida, no meio da execução dos serviços , com uma rescisão contratual sem justa causa e que lhe causou consideráveis prejuízos materiais e morais. Com efeito, a empresa ajuizou ação de reparação de danos materiais e morais contra o município. O juiz ao prolatar a sentença reconheceu os danos emergentes e indeferiu os lucros cessantes, arbitrando os danos morais no valor de R$ 20.000,00 e silenciou sobre a verba de sucumbência . Como não houve recurso voluntário das partes, o juiz procedeu a remessa obrigatória para o Tribunal de Justiça. Nesse caso o Tribunal reconheceu a existência de lucros cessantes, aumentou o valor do dano moral para R$ 50.000 e percebendo a gritante ilegalidade arbitrou a verba de sucumbência em 15% sobre o valor da condenação, entendendo assim, que os novos parâmetros são os mais justos para compor o litígio. Destarte, o órgão ad quem, pelo fato mesmo de não se tratar de recurso reapreciou integralmente a matéria e substituiu a decisão anterior por outra mais justa, corrigindo-se manifesta ilegalidade, embora contrária aos interesses da Fazenda Pública. Como se observa existe um interesse público relevante e configurado pelo princípio da dignidade humana, que impõe o acesso do cidadão a uma ordem jurídica justa. Negar-se esse direito sagrado ao cidadão comum ante os interesses da Fazenda Pública , impedindo que o órgão ad quem proceda integralmente atividade cognitiva – mesmo diante de ilegalidade flagrante – sob o fundamento insustentável de que haveria gravame intolerável da Fazenda Pública, seria ferir de morte os valores da Justiça e o princípio constitucional da dignidade humana. Que interesse é este que se sobrepõe aos maiores valores do ser humano? Eis a indagação e indignação inquetante de Sérgio Nojiri(2000: 346.)

“Que interesse público é este que prestigia uma atitude flagrantemente ilegal(receber valores pecuniários, a título de tributo, com prazo de correção monetária indevidos) em detrimento de interesses absolutamente legítimos do contribuinte? Se foi verificada uma ilegalidade praticada pela Fazenda Pública e esta foi corrigida em 2ª instância pelo Tribunal ad quem, esta última estaria sendo contrária a algum interesse público? Se para aqueles que defendem a tese aqui combatida a resposta for positiva, perguntamos: haveria interesse público a ser defendido, nos casos em que a Administração Pública age contrariamente ao disposto na lei?

Conclusão -

É de se afirmar, numa linguagem eminentemente técnica, que no atual estágio de evolução social em que está inserido o Brasil, no âmbito de um Estado Social e Democrático de Direito, no qual são preservados os princípios da dignidade humana e da isonomia, não há mais lugar para essa excrescência peculiar de nosso sistema processual denominado reexame necessário. A sua face autoritária, própria do período histórico em que foi concebido, choca frontalmente com os princípios processuais e constitucionais. Nesse contexto, por não se tratar de recurso, evidentemente que a reapreciação da sentença de primeiro grau pelo órgão ad quem não pode sofrer a influência de princípios inerentes ao recursos e efeitos inerentes ao recursos, como o princípio non reformatio in pejus e o efeito devolutivo, o que significa admitir que o órgão ad quem está autorizado a reapreciar integralmente a matéria objeto do reexame necessário e proferir o provimento que achar mais justo, mesmo que seja contrário aos interesses dos entes públicos. O interesse público do acesso a uma ordem jurídica justa prepondera sobre qualquer outro “interesse” como verdadeiro corolário do princípio da dignidade humana.

Referência bibliográficas

I – MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. Campinas:Bookseller, v. III, 1997.

II - THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

III - NERY JUNIOR, Nelson. Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil extravagante em vigor: atualizado até 10.03.1999 . 4a. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais , 1999.

IV - ------------------------------. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4a. Ed., 1997.

V - SANTOS , Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Saraiava, 3º vol., 1995.

VI – DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma.

VII – BEZERRA, Paulo César. Determinismo e livre-arbítrio. Uma dicotomia historicamente relevante e suas implicações no direito. Diké – Revista Jurídica do curso de Direito da UESC/ Universidade Estadual de Santa Cruz. Ilhéus: 2001. Anual. Edição especial , pg. 90/91.

VIII – NOGIRI, Sérgio. Remessa ex officio – proibição da reformatio in pejus: jurisprudência comentada. Revista de Processo nº 91, ano 21, abril-junho, 2000.

IX – ABBAGANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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